Espaço Littera

JEAN CLAUDE ABRIC E A RELOJOARIA DAS NUVENS...


Produzir uma relojoaria das nuvens – é assim que um dos colegas que prestaram 

homenagem póstuma a Jean Claude Abric, prof. Pedro Humberto Campos definiu o

projeto da obra do autor. Em seu percurso Abric encontra em Popper, Das nuvens e dos

relógios: uma aproximação da racionalidade e da liberdade humana, inspiração para

sua conclusão de que o conhecimento individual/social apresenta uma estrutura que o

organiza. Dessa organização fazem parte o Núcleo Central e os Elementos Periféricos.

Ou seja, alguns elementos de nosso pensamento são mais fortemente organizadores de

nossas concepções, ilusões e imagens – Núcleo Central (NC) – do que outras – periferia

do NC. Em outras palavras, alguns traços de nossas representações são mais centrais

que outros.

A expressão “relojoaria das nuvens” aludida pelo prof. Campos me traz a mente

a ideia de uma maquinaria do pensar humano. Uma maquinaria do imponderável que é

o pensar humano... Nesta perspectiva, talvez possamos afirmar que para ser inteligível

o pensar humano precisa de uma maquinaria que lhe estruture e lhe permita funcionar.

É como se o pensar humano possuísse engrenagens e funcionamento muito particulares

dos quais fazem parte o centro e a periferia.

Para chegar à sua obra-prima  Práticas Sociais e Representações,  produto de

sua tese de doutorado Jogo, conflito e representações na qual aborda esse tema, Abric

percorreu 40 anos de carreira acadêmica. Sua carreira se inicia com indagações sobre

a imagem que os sujeitos produzem sobre o outro e para encontrar resposta a esta

inquietação passa pela investigação dos jogos, em especial do Pôquer. Em sua tese

conclui que as práticas sociais são produto das interações recíprocas entre um sujeito/

uma organização sócio-cognitiva particular e uma dinâmica social. Dinâmica social

significa aqui o eu e o outro em interação em um contexto particular. Essa interação é

marcada pelo contexto particular no qual interagem. Podemos dizer que desse contexto

depende a forma como a interação eu-outro se realiza. São exemplos disso as práticas

sociais dos jogadores cujas características dependem do contexto em que o jogo se

efetiva. A conduta do jogador se modifica conforme seu oponente seja seu colega, seu

chefe, seu irmão ou, ainda, seja um colega considerado esperto ou tolo no jogo.   

Da curiosidade inicial de Abric sobre “como eu penso o outro?” – esse outro

que é sempre um diferente de mim e me é estranho –, o autor encontra respostas,

primeiramente, no estudo de dilemas e, posteriormente, na Teoria dos Jogos. No

primeiro conclui que a representação que o sujeito faz do outro e a previsão de sua

conduta influenciam a tomada de decisões para a resolução dos dilemas. Dos dilemas

passa para o estudo dos jogos, em especial do pôquer, no qual se tornou um grande

jogador!!!

È interessante notar que para Abric, no pôquer, mais do que talvez em outros

jogos de mesa, o jogador está frente a um “outro” que NUNCA pode ser completamente

compreendido. Ser um bom jogador no pôquer significa saber blefar, saber mostrar-se

um enigma, alguém que não deve ser decifrado pelo adversário. Destaca, dessa forma,

que é o significado que o sujeito fornece à situação de jogo e não o jogo em si que

orienta as práticas do jogador. 

Dar-se conta disso abriu as portas de Abric para a investigação da interação

social “eu e o outro” – o diferente, o estranho, o que NUNCA pode ser decifrado e

compreendido completamente. Dessa vertente de pesquisa emergiram seus estudos

sobre cooperação e competição que teve grande influência posterior nas pesquisas sobre

influência social.

Sem dúvida, Abric trouxe grandes contribuições à Teoria das Representações

Sociais das quais os estudos do Gepac podem se beneficiar, como, no presente

momento, os estudos de Karina Toledo sobre o Núcleo Central das RS sobre estudantes

jogadoras de futebol e Pâmela Faeti sobre cooperação, competição e relações vinculares

no jogo.  

Em Recife, 27 de agosto de 2013.


Geiva Carolina Calsa


Guimarães Rosa: uma paixão renovada...

Ao definir o título destes apontamentos escrevi uma paixão renovada mas, imediatamente, pensei que talvez não fosse exatamente essa a sensação que tive ao ler Grande Sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. Havia lido outras obras dele, no entanto, não sei por que ainda não havia enfrentado as seiscentas e tantas páginas do Grande Sertão. Na verdade, o que senti pode ser definido como uma nova e grande paixão.
 A paixão se iniciou na continuidade do estranhamento com a linguagem. Senti uma vontade muito forte de ler várias frases em voz alta e a cada vez o encantamento com a sonoridade das palavras crescia mais e mais. Conversando com amigos do Clube do Livro[1] um deles lembrou o caráter poético desta prosa de Guimarães. Ele lembrou a força da sonoridade das palavras que fazem toda a diferença tanto do ponto de vista estético do texto como de sua compreensão. Acho que pela primeira vez eu li poesia em forma de prosa.
Como alertara Paulo Rónai no prefácio do livro, as cem primeiras páginas quase me levaram a desistir da leitura. O texto é de difícil articulação no início, me senti perdida entre tantos personagens e com a linguagem usada por Guimarães que me parecia “exótica” demais, até para ele. Contudo, de fato, passando esse início a paixão começou devagarinho, de maneira imperceptível e irremediável. Ainda em relação à linguagem, do meio ao final do livro outro aspecto passou a me inquietar: como um personagem rude como Riobaldo ao narrar sua história a partir de temas locais e com um vocabulário extremamente regional, muitas vezes áspero e também rude, podia me levar a pensar sobre coisas tão essenciais como a relação do humano com a natureza, com o transcendente, com seus pares e consigo mesmo.
Para mim era como se o texto apresentasse pelo menos duas camadas. Uma camada externa relativa aos conteúdos relatados e outra envolvendo essas questões universais. Riobaldo se pergunta, por exemplo, ao longo de sua narrativa sobre a existência do diabo. Esse diabo que se apresenta por meio de diferentes máscaras e em diferentes situações, desde as mais simples como “o diabo na rua, no meio do redemoinho...” às mais duras como a morte de Diadorim. Conclui ao final que o diabo existe e não existe. O que existe é o “homem humano” pleno de ambigüidades como deus e o diabo, o bem e o mal, caminho e desvio, homem e mulher. Ser humano é ser simultaneamente seus dois lados, como deixa a entender ao relatar sua violência com um traste que se aproxima do bando com seu cavalo magro e seu cachorrinho. Ao narrar sua violência com os três, descreve também seu estranhamento interno. Em sua mente se pergunta por que maltrata o pobre homem, por que humilha alguém já tão humilhado pela vida, por que deve ou não matá-lo. É como se descrevesse a dor originária dessa luta interna entre o bem e o mal. O final da situação é bom e mal: o homem mantém sua vida e seu cachorro, mas perde seu cavalo e seu caminho. A Riobaldo parece restar mais uma vez uma questão: por que?
Riobaldo é pleno de contradições, ambigüidades e ambivalências, é humano em sua plenitude. Seus amores sinalizam esta plenitude. Ribaldo ama Diadorim em tudo que ele representa como mulher e o ama também por tudo que representa como homem. Ama-o também e, principalmente, por este conjunto indiferenciado, sua docilidade e sua meiguice, ama sua força e sua coragem. Além de Diadorim, como mulher, ama Nhorinhá, a "prostitutriz", da qual se lembra com carinho e desejo, ama Otacília, a donzela com quem pretende casar, e na qual pensa com ternura e esperança de sossego e família. Ama também os homens, os mais simples, jagunços como ele, e os chefes como Zé Bebelo, seu grande modelo como comandante da jagunçada. É neles que pensa sempre que precisa tomar uma decisão, pequena ou grande.
È curioso como o estranhamento de Riobaldo em relação aos seus amores não o impede de senti-los e, mais, não o impede de conviver e usufruir de sua coexistência o máximo possível. È como se cada um deles representasse uma vereda a ser percorrida por ele. Como destacado no prefácio da obra podemos pensar nesta relação grande sertão: veredas como a relação existência humana: ação humana. Cada vereda é uma ação humana possível entre tantas possíveis na existência humana. Essa interpretação se confirma ao encontrarmos o significado da expressão “nonada” tantas vezes repetidas por Riobaldo durante sua narrativa. Nonada significa não-nada, a negação do nada, do vazio. Isto é, a ação humana que nega o vazio da existência humana a ser vivida. A cada vez que o ser humano realiza uma ação significa a vida que recomeça deste nada, a cada ação que se finda, o vazio, a morte é reencontrada e pode ser negada por uma nova ação, uma nova vereda humana.
O ser humano vive neste espaço entre o vazio e o realizar humano. Neste espaço “entre”, descobrimos e construímos o significado deste mundo para nós e para os outros no contato conosco mesmos, com os outros e com os objetos-mundo[2]. È neste espaço que realizamos a finitude de nossa existência. Consideramos esta uma forma de entender o sentido finito da existência humana: vivemos no limite, na fronteira, nas orillas[3] entre a vida e a morte: entre os possíveis da existência e as escolhas, as veredas... os fazeres, os pensares, os saberes.

              De outro lado, a forma “truncada” e “esquizofrênica[4]” do texto de Rosa nos lembra de outro espaço “entre” no viver humano: vivemos em um espaço entre fantasia, memória e realidade. Vivemos entre um mundo de memória e fantasia, ou seja, de ilusões para trás – o passado que reconstruímos para compreendê-lo e de ilusões para frente – o futuro, que construímos para buscar realizá-lo.
Acredito que é neste espaço ENTRE que Riobaldo narra sua história para ressignificar seu passado e significar seu presente e seu futuro. Acredito que é neste espaço ENTRE que Guimarães Rosa escreveu seu belo livro. É neste espaço entre que espero que vocês, em especial os membros do GEPAC, aceitem a sugestão de leitura desta obra.    
 


Geiva Carolina Calsa 


[1] O Clube do Livro de Maringá reúne-se nos primeiros sábados de cada mês na Biblioteca Municipal Central e discute um livro pré-combinado.
[2] Como usado por Sandra Jovchelovitch em sua obra “Representações Sociais”, editora Vozes.
[3] Usando uma expressão de Borges.
[4] Conforme a opinião de outro colega do Clube do Livro de Maringá 

3 comentários:

  1. Amei a análise da obra!!! Fiquei refletindo sobre os espaços entre que a arte proporciona. Como este que você acabou de estabelecer ao analisar esta obra prima de Guimarães Rosa.
    abraços
    Eloiza

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  2. Muito legal professora Geiva o seu texto sobre o Abric...
    Com certeza... os estudos do Abric vão contribuir imensamente para meu doutorado. :)

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  3. Que lindo tudo isso... gostei demais!!

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