Em Portugal – Évora e Maringá, julho, 2012.
Comecei este texto em Lisboa com o título
“Saberes profanos, saberes sagrados e poder” baseado nas falas do evento em
Évora. Chegando à Maringá o acesso a informações sobre a descoberta do bóson de
Higgs, a denominada partícula de Deus, me levou a novas inferências sobre a
relação entre senso comum e ciência.
Marcelo
Gleiser, na Folha de São Paulo de domingo (08/07), comenta que o “papel do
Higgs é único entre as partículas [da matéria]: ele é responsável por ‘dar
massa’ a todas as outras. Vale lembrar que, na física moderna, as entidades
essenciais são os campos. Partículas são excitações desses campos, como
pequenas ondas na superfície de um lago. O campo de Higgs estaria por toda
parte, como o ar na nossa atmosfera. Ele interage com os campos de outras
partículas: por exemplo, o campo dos elétrons ou dos fótons [...].
Um dia antes, sábado,
na Folha, (07/07), Álvaro Pereira Júnior, escrevia que tudo é constituído pelas
partículas de Deus, não só “Scarlett Johansson” (sic). “Ela e tudo o mais no
universo que tem massa (popularmente conhecida como peso): as batatas-baroas, a
poeira cósmica, os gases, os sólidos e os líquidos, o pigmento das retinas, uma
folha de acelga, um caramujo escondido na areia, a própria areia, o ar. Todas
as coisas.”
O autor
comenta ainda que essa descoberta “dá uma boa chacoalhada na teoria vigente do
mundo subatômico, sobre o qual se edificou a física contemporânea. [...] Mas
ficará faltando explicar por que existem. Por que prótons, nêutrons e elétrons
decidiram dar uma paradinha, se juntar, e formar tudo o que conhecemos, em vez
de vagar solitários pelo espaço, praticamente à velocidade da luz?”.
As características e condições de existência
do bóson de Higgs me fizeram pensar: não são também estas as características e
condições de existência do senso comum? A inscrição do senso comum como um
saber importante para a edificação de todas as formas de saberes humanos,
incluindo a ciência, por parte Serge Moscovici também deu “uma boa chacoalhada”,
nas ciências humanas. Até então relacionado às representações coletivas, o
senso comum passa a ter um status diferente,
o de representações sociais. Neste novo status
o senso comum é entendido como constituído pelo pensamento hegemônico, pela
ciência e todas as outras formas de saber, mas, principalmente, como um
conhecimento que os constituem também.
Para a
ciência, até então, segundo afirmação de Denise Jodelet no evento, o senso
comum era considerado um “saber profano”, um “saber selvagem”; enquanto a
ciência era considerada saber um “sagrado”. Entendia-se que a origem ontológica
de um e outro saber fosse diferente. Os achados de Moscovici, para a autora, trouxeram
a tona a origem ontológica única dos dois saberes: ambos estão
imbricados à subjetividade dos sujeitos que os produzem. Ambos dependem dos
elementos subjetivos e experienciais dos sujeitos apesar da busca incessante da
ciência pela não promiscuidade com a subjetividade humana.
Jodelet lembra
que é a interação do sujeito com o objeto de conhecimento que produz o saber e
não as características estruturais deste último. É, portanto, a experiência do
sujeito sobre o objeto que permite a produção de conhecimentos. Neste sentido,
a ciência pode ser compreendida como um saber metódico e formalizado cuja
origem é, intrinsecamente, o saber de senso comum. A ciência se caracteriza
como um saber em constante processo de objetivação que categoriza os fatos, que
os formaliza, e que adquire uma qualificação “sagrada” pela sociedade moderna.
Valendo-nos
das afirmações de Gleiser, Pereira Junior e Jodelet, deduzimos que o senso
comum, do mesmo modo que os bósons de Higgs e as outras partículas de massa, dá
uma “paradinha” e se organiza criando saberes sobre nós mesmos e o mundo que
nos rodeia. Que “paradinha” é esta? Uma paradinha em que o senso comum se
combina – se funde – com elementos imprevistos e de maneira também imprevista: funde-se
com elementos da percepção, da moral, da religiosidade, da afetividade, de
conceitos científicos, da ludicidade ou da experiência prática, pessoal e
coletiva. Enfim, combinações de tal ordem, peculiares a cada um, e que produzem
“a novidade”. São combinações sobre as quais o indivíduo que as produz, seu
grupo – científico ou não – e a própria sociedade não têm controle. É a partir
dessa condição de produção de novidades que o ser humano cria conhecimentos
(científicos e não-científicos) e... toda a diversidade de artefatos técnicos e
culturais que sustentam sua vida no planeta.
Em sua
apresentação, Jodelet exemplificou a importância dessa “chacoalhada” sobre o estatuto
dos conhecimentos de senso comum e científico, iniciada por Moscovici na década
de 60 do século passado, com as relações
doença-paciente-médico. Neste caso, a mudança do estatuto dos saberes do médico
e do paciente implica a modificação das relações entre ambos, bem como entre os
dois e a própria doença. O médico pode aprender sobre a doença a partir do
saber experiencial (conhecimento selvagem, profano) que o paciente detém sobre
ela.
Por outro
lado, a aprendizagem do paciente com o médico em combinação com seu saber
experiencial permite-lhe formar sua expertise
sobre a doença. Segundo dados colhidos pela autora, esse processo é capaz de
reduzir a negação e o pensamento mágico do paciente em relação à sua cura e à
sua doença. Para a saúde pública francesa onde a pesquisa
relatada por
Jodelet foi realizada isso significou maior adesão e manutenção dos pacientes
nos tratamentos médicos: o saber científico e o saber experiencial formaram uma
unidade de expertise.
O exemplo dado
por Jodelet na área da saúde nos lembrou duma experiência brasileira muito bem
sucedida e que serviu como marco inicial para a mudança da forma de atendimento
a doentes mentais. A psiquiatra Nise da Silveira, reconhecida
internacionalmente por seu trabalho, ao compreender a existência e a
importância dos saberes dos doentes mentais que atendia em um hospital público,
favoreceu sua expressão. A forma de expressão escolhida por eles foi
predominantemente artística: a pintura, a escultura, a dança, a música. Muitas
dessas produções, assim como seus autores, foram reconhecidas como obras de
arte com apresentação em galerias e museus – nacionais e internacionais. O que
mudou? No que a doutora Nise da Silveira deu uma “boa chacoalhada”?
Com base nos
argumentos anteriores, considero que mais uma vez a “chacoalhada” foi dada no
estatuto dos saberes humanos. O saber
“selvagem” possuído pelos doentes mentais – seu senso comum – foi alçado a uma
forma de saber considerada capaz de criar. A combinação de informações da
percepção, de sua afetividade, de sua moral, das cores, dos sons, dos
movimentos, entre tantos outros, foi favorável a criação de novos saberes – a
música, os movimentos de dança, a escultura ou a pintura – considerados, então,
neste caso, saberes socialmente aceitos e valorizados. Transpondo esses
exemplos para a área da educação escolar o que podemos inferir? O que podemos
hipotetizar sobre o tema?
Pensar ou fazer essa “chacoalhada” na
instituição escolar não é novidade e também não tem sido ponto de acordo entre
pesquisadores de diferentes linhas teóricas. Dewey e Anísio Teixeira, Freinet e
Snyders, para citar alguns, buscaram formas de fazer a passagem do saber de
senso comum ao saber científico escolar. Mais recentemente, Arnay e Terrazan
apontaram a impossibilidade de substituição de um conhecimento pelo outro – o
senso comum, promíscuo e de validade duvidosa; e a ciência, objetivo e com validade
certificada. Os autores afirmam que os dois tipos de conhecimento mantêm sua co-existência
ainda que a escola busque a predominância do conhecimento científico sobre o
senso comum.
Que
conseqüências esta “chacoalhada” epistemológica tem trazido para a escola
brasileira? Que conseqüências pode vir a trazer para a escola brasileira
contemporânea? Essas são respostas que nosso grupo de pesquisa vem
procurando encontrar do ponto de vista teórico e empírico e que justificam em
parte sua existência e continuidade.
Um
abraço aos membros de nosso grupo e simpatizantes, Geiva.