Em Portugal – Évora, junho, 2012
O título deste texto é também o título do evento em Évora. Aqui estão presentes grandes nomes da Teoria das Representações Sociais, incluindo Serge Moscovici e Denise Jodelet. O primeiro, em bela cerimônia entre estas paredes medievais da Universidade de Évora, foi agraciado com o título de Doutor Honoris causa pelo conjunto de sua obra. Com muita honra pude assistir a cerimônia extremamente antiga e plena de simbolismos.
Além destes dois grandes nomes, pude assistir as participações de Sandra Jovchelovith, que temos usado como referência em nossos estudos; Willem Doise, que produziu também alguns trabalhos com Piaget; Pedrinho Guareschi, Ivana Marková; János Lászlo, Angela Arruda; Clarilza Prado; entre tantos outros. Segundo o relato de algumas colegas, nós brasileiros formamos pelo menos um terço da quantidade de trabalhos inscritos e apresentados no evento.
Assisti apresentações que acreditei pudessem nos auxiliar em nossas pesquisas. Da fala de Willem Doise dois pontos me chamaram a atenção: o movimento das minorias e do próprio sujeito em direção à mudança. Comentou, em primeiro lugar, um período importante da história da Educação em defesa destas duas visões. Na década de 1960 vários pesquisadores de diferentes áreas de conhecimento como Jean Piaget, Edgar Morin e o próprio Doise destacaram a necessidade de novas respostas da sociedade frente às mudanças sociais em curso. A pergunta que “sociedade melhor é possível” cada um procurou responder em sua obra.
De acordo com Doise, dentro do campo das Representações Sociais essas discussões foram acompanhadas de pelo menos um grande estudo: o papel das minorias no movimento de “empurrar” a sociedade para uma oposição contra-hegemônica e em defesa de seu ideário. Dos elementos envolvidos neste movimento um aspecto passou a chamar a atenção de Doise nas situações sociais e pessoais de conflito: o papel “de vítima” por parte da vítima de embates ideológicos, militares ou econômicos. Assinalou que a percepção de sua posição de vítima por parte do indivíduo, ou seja, as representações sociais de si mesmo como vítima influenciam a posição da qual toma decisões e age.
Em continuidade, sobre esta discussão duas apresentações me foram significativas: a de Aline Accorsi e a de Sandra Jovchelovitch. Accorsi, em um recorte de sua tese de doutorado, apresentou a percepção de um indivíduo como “vítima”, e sua paralisia emocional, cognitiva e prática acompanhada da inoperância de mecanismos sociais, de saúde e econômicos que lhe auxiliassem em um processo de saída da situação presente. O caso relatado trata de uma mulher pobre, na faixa dos 54 anos com muitas perdas: a do filho assassinado, a da filha acidentada, a do marido que lhe abandonou, a da saúde, por ter quebrado um pé, e a do emprego em conseqüência do acidente, a da bolsa-família por ter perdido a guarda de seus netos para o pai. Segundo Accorsi, as representações sociais desta mulher em relação a si mesma estavam predominantemente ancoradas na religião – no pecado e na punição. Acreditava ter “jogado muitas pedras na cruz” para estar lhe acontecendo tantas desgraças ao mesmo tempo. A objetivação dessa ancoragem manifestava-se em sua plena disposição a aceitar e a pagar sua punição divina em vida. Dependeria, portanto, de uma manifestação divina a possibilidade de modificação de sua condição. Aqui encontramos o papel dominador da moral religiosa concebida como uma representação coletiva.
Jovchelovith, partindo de seu livro sobre esferas públicas e privadas no Brasil, destacou a persistência de uma visão pessimista do brasileiro em relação a si mesmo. Em sua pesquisa feita em 1997 as falas dos sujeitos sobre a corrupção no país baseavam-se em uma visão biologicista deste fenômeno. Em 2011 novos dados, ainda informais, revelam que esta visão socio-biologicista se mantém: os sujeitos dizem de um vírus ou uma epidemia de corrupção que ataca a todos os brasileiros, da qual ninguém escapa. Falam de uma corrupção que não pode se extinguir porque está no “sangue” do brasileiro. Neste trabalho torna-se clara a condição de vítima assumida pelo brasileiro que neste contexto considera impossível qualquer mudança no cenário nacional em todas as esferas, públicas e privadas. Parece-nos encontrar no fato relatado a força impositiva de uma moral insidiosa, silenciosa e inquebrantável que atua como uma representação coletiva junto ao povo brasileiro, um mito (?).
Tomando como ponto de partida esta constatação a autora tem buscado apoio da área da História para compreender e descrever este fenômeno do “perceber-se/compreender-se vítima”. Neste sentido, além de sua investigação pessoal tem orientado pesquisas que buscam responder sobre o papel da tradição na manutenção e modificação de representações sociais dos sujeitos em diversas áreas. Como o passado serve como origem e padrão das representações sociais? Como a tradição participa do processo de criatividade, de construção da novidade? Surpreendeu-me o relato de uma destas pesquisas em andamento: o processo de enfrentamento tradição/inovação na pintura de ovos decorativos por parte do povo romeno. Quem desenvolve a pesquisa é um estudante de doutorado também romeno que nos mostrou elementos similares e diferentes que já identificou nos ovos decorativos coletados por meio de fotografias. Embora em outra apresentação, Angela Arruda, referiu-se a este tipo de representação – tradição – como “representações transversais”: atravessam o tempo e o espaço mesmo tendo que se modificar pontualmente para se manterem.
Em outra apresentação, Pedrinho Guareschi abordou o processo de naturalização do “quarto poder”, a mídia, e a necessidade de se estar criando um “quinto poder”. A existência dos meios de comunicação e a dependência do sujeito das informações veiculadas por eles é tão forte que não nos concebemos indivíduos sem não mantivermos conexão com algum deles. Se bem entendi, o estabelecimento de um quinto poder envolve os instrumentos e movimentos de enfrentamento da “guerra cultural” (Moscovici) que ocorre em todas as formas de comunicação. Dentro desta perspectiva se organizariam os movimentos das minorias dando voz aos silenciados por meio de denúncia e intervenção.
Do grupo de pesquisa de Guareschi destaco outros dois trabalhos. O primeiro, classificado como pesquisa da área da Psicologia Política, usando fotos e textos de publicidade veiculados em jornais de grande circulação no Rio Grande do Sul, denuncia o apoio da grande imprensa escrita ao golpe de 1964, no Brasil. O segundo trabalho relata uma intervenção posterior ao trabalho de denúncia das representações estigmatizadas e discriminatórias dos negros em relação a si e ao grupo negro. Nesta pesquisa Denise Bussoletti, após constatar o silenciamento da história dos negros em Pelotas/RS, cuja população é eminentemente negra, desenvolveu uma pesquisa de intervenção para expressão das representações sociais dos negros sobre si mesmos. Trata-se de um projeto de contação de histórias por aqueles que as viveram por meio da fala, da música e das artes plásticas. Neste projeto são manifestas estéticas periféricas e subjetividades até então marginais que lutam por espaço midiático e social: uma nova cidadania político-cultural.
Como fios condutores dos trabalhos aqui relatados, assinalo apenas dois, dos quais me dou conta neste momento. A presença conjunta e inequívoca dos elementos emocionais, cognitivos e morais nos processos de construção e desconstrução de representações sociais. O segundo ponto se refere à continuidade das guerras contra-hegemônicas travadas pelas minorias e contra a violação dos direitos humanos. Aqui, então, não podem deixar de ser citados Willem Doise e Denise Jodelet, que em suas falas indicaram a necessidade da mudança social ser acompanhada por mudança no e do próprio indivíduo. As representações sociais a serem desconstruídas e reconstruídas são relativas à alteridade, mas, também, às subjetividades. Citando Juan Tedesco, Clarilza Prado fala-nos de uma Política da Subjetividade a ser empreendida na contemporaneidade no processo de formação de professores, por exemplo.
Concluindo o evento, Jodelet reafirma a importância dos grupos de pesquisa ligados às Representações Sociais realizarem atividades de intervenção, não somente como uma maneira de devolver à sociedade os conhecimentos produzidos pelos pesquisadores, mas também como projetos de intervenção social. Atrevo-me a interpretar sua fala como uma indicação de intervenções que busquem a desequilibração, a desconstrução, o desalojamento, a instauração da dúvida sobre saberes e fazeres naturalizados e mitificados.
Um abraço aos colegas do GEPAC e simpatizantes, Geiva.
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