Em Portugal, Lisboa - junho de 2012.
Em Portugal há alguns dias, uma ida às livrarias de Lisboa suscitou-me o desejo de conhecer outros autores do século XX, que não Saramago, bastante reconhecido entre nós brasileiros. Por indicação de uma funcionária da livraria, deparei-me com Vergílio Ferreira, tão ou mais expressivo em Portugal do que o próprio Saramago.
Nas orelhas de suas obras observei comentários sobre a densidade e o caráter intimista de sua escrita. Ao folhear um de seus livros, menções à Évora, cidade forte e bela como Florbela Espanca – poeta e filha famosa – me convenceram a levá-lo para casa. Na sacola de compras passei a carregar vários pontos de interrogação: O que iria encontrar em Vergílio Ferreira? A ironia e o sarcasmo de Phillip Roth? As incompreensões e descrenças de Albert Camus? A tristeza e o desalento de Saramago?
Enquanto inicio a leitura de sua obra, em uma visita à Universidade de Évora entrei em contato com um pequeno volume contendo dois estudos sobre Vergílio Ferreira lidos durante uma homenagem póstuma ao autor, em 1996. Sua leitura tem me ajudado a compreender um pouco mais o autor e, nesta caminhada, tenho a impressão de encontrar vários pontos de convergência com os estudos de nosso grupo de pesquisa. É o que pretendo relatar a seguir...
Com sofreguidão comecei a leitura de Aparição. O autor define aparição como revelação sobre a existência humana. Inicia sua obra contando em primeira pessoa a chegada do protagonista à Évora para exercer seu ofício de professor do Liceu. Ele acaba por conhecer Sofia que apresenta dificuldade para aprender latim e tem nele um professor dedicado e logo, logo, apaixonado. A paixão passa a ser recíproca e é neste ponto que se encontra minha leitura ao escrever o presente texto.
Esta é uma das narrativas de Vergílio nesta obra. Digo uma de suas narrativas, mas talvez não seja este o melhor termo para definir o entrelace de vidas que se estabelece ao longo de seu texto. Outras vidas são narradas, em várias camadas de passado – mais próximas e mais remotas. As vidas do professor e de Sofia; as vidas da família de Sofia; e as vidas do professor e sua família. São exemplos disso a descrição do primeiro encontro do professor e de Sofia, e dos episódios que transcorreram um pouco antes e um pouco depois da morte do pai do protagonista durante um jantar em família.
Percebo que Vergílio, enquanto narra os fatos dos diferentes passados e do presente, toca em reflexões sobre a existência humana. É sugestivo o caso que o professor, Doutor Alberto Soares como é chamado, narra a Chico, amigo do pai de Sofia, e a Bexiguinha, aluno do Liceu, que para alguns se converte em tópico de chacota, enquanto para outros, motivo para expressar um pensamento até então encoberto. Por meio de dois personagens – o aluno do Liceu, cheio de espinhas, muito quieto e, de certa maneira, excluído pelos colegas; e a mãe de Sofia, madame Moura, uma dona de casa comum – parece dizer da exclusão que o indivíduo pode sentir apenas pelo fato de pensar de um modo diferente da maioria com a qual convive.
Assim é que a reação da mãe de Sofia ao caso contado pelo professor é tratada pelo marido como excentricidade e certa tendência ao “desequilíbrio” mental, enquanto a de Bexiguinha é considerada uma confirmação de seu comportamento “estranho”. De qualquer forma, em ambos os casos não é assim que o protagonista os vê.
O caso é o seguinte: a partir de uma situação de enforcamento que o pai de Sofia e o professor quase assistem, este se dá conta do tema sobre o qual gostaria de falar para a comunidade em palestras públicas. Comenta com Chico, o organizador das tais palestras públicas, que há momentos em que o ser humano não escapa de enfrentar a si e sua pequenez; apesar de ter medo deste momento nenhum de nós consegue escapar. Para ilustrar explica a sensação que temos ao nos encontrarmos sozinhos e no escuro, a noite. É como se nos defrontássemos a nós mesmos em um espelho. O professor conta que desde criança quando se olha no espelho é como se visse o outro de si mesmo.
Ao ouvir este relato Bexiguinha acaba por admitir que também se sente assim: as vezes pensa como seria se fosse uma “galinha”, as vezes faz caretas ao espelho como se fosse “outros” de si mesmo. Quando se despede do professor Bexiguinha avisa que iria para casa “pôr-se bem no centro de [si] e ver-[se], sentir-[se] bem de dentro para fora, descobrir a pessoa que está em [si]”. Como os comentários do professor e de Bexiguinha chegaram aos ouvidos da família de Sofia por intermédio de Chico, a mãe passou boa parte da madrugada acordada e pondo-se diante do espelho passou a mirar-se interrogativamente.
Na família do professor as reações dos irmãos – Tomás e Evaristo – à morte súbita do pai também mostram a fragilidade humana ao evidenciar os diferentes graus de compromisso, e de sua expressão, com o pai morto. Um dos irmãos recusa-se a trocar as roupas do pai e com sua mulher repete preocupações e falas já esperadas por todos: Evaristo “fala dos seus negócios, 200 contos, 500 contos, a casa Varela, 400 contos de encomendas”, enquanto sua esposa, Julia, “contava anedotas com pimenta”.
Do ponto de vista moral, fica-me uma interrogação que, embora não abordada por Vergílio, não sei responder e me incomoda. Como avaliar o comportamento de Evaristo. Se, de um lado, para a moralidade do grupo sua conduta pode ser considerada imoral por não manifestar o afeto que um filho deveria manifestar por seu pai; por outro lado, sendo a moral uma construção de grupo, incluindo os sentimentos e suas expressões, sua conduta poderia ser considerada uma manifestação da liberdade humana. Em sua obra, O estrangeiro, Albert Camus mostra o quanto o indivíduo pode ser mais fortemente julgado pelas intenções, boas ou más (mesmo que do passado), do que por ações do seu presente. É o caso do indivíduo que, embora assassino é julgado menos por seu assassinato do que por suas manifestações de falta de amor filial, uma vez que não chorou e não acompanhou da maneira esperada o enterro de sua mãe.
Para responder, em parte esta a questão – como entender o comportamento de Evaristo, do estrangeiro, e de qualquer um de nós –, escolho o seguinte trecho escrito por Vergílio:
Por enquanto sinto a evidência de que sou eu e que me habito, de que vivo, de que sou uma entidade, uma presença total, [...] este vulcão sem começo nem fim, só actividade, só estar sendo, EU, esta obscura e incandescente e fascinante e terrível presença que está atrás de tudo que digo e faço e vejo.
De outra parte, a impressão de descontinuidade dos fatos, que tenho durante a leitura do texto de Vergílio, é explicada pela profa. Eunice Cabral (Universidade de Évora) e faz algum sentido para mim. A professora destaca que da perspectiva vergiliana “A realidade não constitui um objeto em si mesmo mas antes irrompe em eventos descontínuos e irrepetíveis”; a “realidade é um monturo e a confusão a que nós impusemos uma ordem”; “A [realidade] é um excesso de fenômenos descoincidentes que têm lugar num mundo simultaneamente esvaziado de um sentido global”.
Além disso, sinto como muito forte a presença do “sujeito” em sua obra, o que é confirmado pela docente. Contudo, para ela, o “eu já não é concebido [em Vergílio] como um princípio da subjectividade universal a partir da qual se pode traçar uma visão unitária da realidade, como nos primeiros tempos da modernidade. Com efeito, o retorno do narrador-sujeito, no romance moderno do século XX é acompanhado de um perspectivismo cada vez mais elaborado [...]”.
Esses dois parágrafos revelam três condições que são caras ao trabalho científico do GEPAC: a realidade/a história não se constitui uma progressão linear; o modo de compreender essa realidade não é única e verdadeira; o eu compreende essa realidade a partir de mais de uma perspectiva. São muitos os eus que conhecem... e em cada eu são vários os que nos definem...
Sua obra põe em causa os dualismos tidos como universais: o interior/exterior; aparência/realidade; ser/parecer. Pelo contrário, segundo a profa. Cabral, para o autor a aparência nada mais é do que a maneira da realidade/do ser se revelar. Portanto, não se opõem. Podemos depreender daí, por exemplo, que não há nada a desvelar e sim a compreender o que a aparência revela. Não há algo a buscar por trás ou para além da aparência. A aparência ela em si revela o que é a realidade/o ser.
Outra docente, profa. Rosa Maria Goulart (Universidade dos Açores), que com seu texto também homenageia Vergílio Ferreira, lembra que sua obra pode ser considerada uma continuidade do novo romance que desde o final do século XIX vem sendo representado por “Flaubert, Dostoievski, Proust, Kafka, Joyce, Faulkner, Beckett”. Classificação em que o autor sente parcialmente confortável, conforme a docente. Além disso, embora alguns críticos creditem sua obra ao existencialismo ele mesmo se distancia desta perspectiva filosófica ao afirmar, segundo a professora, que “o Existencialismo, denunciando o ‘absurdo’, sofrera com ele; e o Novo Romance se instalara nesse ‘absurdo’ sem sofrer nada com isso”.
Vergílio parece admitir sua filiação ao novo romance no que se refere ao “desgaste das formas estruturais do romance tradicional e ao uso do tempo, ou seja, “à liberdade de um jogo entre o real e o irreal”, habilidade na qual destaca Kafka “o grande mestre”. Para a profa. Goulart, Vergílio mantém “com o novo romance uma ambígua relação, de distanciamento crítico [...] e de alguma admiração. Novos aspectos que coincidem com a forma de visão de mundo que norteia as pesquisas do GEPAC.
Um abraço a todos do GEPAC e simpatizantes...
Geiva
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