XIV Simpósio da ANPEPP - Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia 2012 / Belo Horizonte
Durante os encontros do GT Jogo e sua importância para a Psicologia e a Educação discutimos vários temas. Alguns chamaram especialmente minha atenção, talvez pelo fato de estarem, de alguma maneira, relacionados aos projetos de pesquisa do GEPAC. Um desses temas refere-se à Sensibilidade Cognitiva.
Esse tema passou a fazer parte de meu repertório conceitual quando fiz o curso de Psicopedagogia com o psicopedagogo Jorge Visca, em Curitiba, anos 80. Ele referia-se à sensibilidade e insensibilidade cognitiva como uma condição do sujeito deixar-se ou não envolver, tocar, atravessar por algum elemento do meio: uma música, os fatos de uma narrativa e sua seqüência, os dados e os procedimentos de resolução de um problema. Segundo Visca, a sensibilidade cognitiva (ou insensibilidade cognitiva) depende de condições intelectuais do sujeito como conhecimentos e experiências anteriores, assim como condutas cognitivas: ordenar, classificar, comparar, relacionar, entre outras. Depende também da condição afetiva do sujeito, tanto os recursos emocionais de que dispõe como daqueles que é capaz de acionar ou não no momento específico em que se aproxima de um objeto de aprendizagem.
Assim, a sensibilidade e a insensibilidade cognitiva podem ser acompanhadas por estados de indiscriminação e discriminação afetiva. Por exemplo, um sujeito que apresenta insensibilidade cognitiva a um objeto de conhecimento como uma placa de aviso da localização do sanitário de um shopping pode sentir, ao mesmo tempo, indiscriminação afetiva, também denominada por Visca de estado confusional. Procuremos imaginar: o sujeito precisa ir urgentemente ao sanitário e não consegue enxergar a placa, ele vê e não vê a placa, comportamento acompanhado de uma sensação de grande confusão interna. Em outra circunstância este mesmo sujeito consegue enxergar duas placas, uma com desenho de mulher e outra, de homem. Sensível cognitivamente às placas interpreta-as como possíveis sanitários, mas elas estão escritas em uma língua que não sabe ler. As placas passam a ser sentidas como “inimigos em potencial”. O sujeito, então, pode vir a sofrer uma sensação de medo ao “ataque das placas” que são apenas parcialmente inteligíveis e dificultam sua avaliação e tomada de decisão sobre o que fazer. Frente a uma situação deste tipo temos reações diferentes: uns paralisam, outros buscam ajuda, e outros, ainda, se arriscam e entram no sanitário, certo ou errado’.
Ao conjunto de combinações insensibilidade cognitiva-indiscriminação afetiva e insensibilidade cognitiva-discriminação afetiva (medo ao ataque e medo a perda), Visca denominava obstáculos epistemofílicos de aprendizagem. Epistemofilia se refere, neste caso, ao vínculo afetivo do sujeito com o aprender (conhecer) – positivo ou negativo. Nos anos em que atuei em atendimento clínico psicopedagógico esse conhecimento foi de grande valia para mim e meus clientes que, graças a ele, puderam ser melhor compreendidos em suas dificuldades de aprendizagem.
Há poucas semanas o tema “sensibilidade” voltou à baila como sensibilidade ética preconizada pelo prof. José Joaquim Severino. Procurando textos para a disciplina de Didática do curso de Pedagogia encontrei este conceito explicado como a condição de o sujeito deixar-se tocar pelas situações que envolvem valores. Ou seja, não segui-los pura e simplesmente, mas interpretá-los como dilemas morais que merecem sempre um processo de reflexão. Uma reflexão que envolve pensar as regras morais a partir do contexto em que foram produzidas, bem como do contexto em que estão sendo cogitadas. Isso significa autonomia de pensamento, de tomada de decisão e de ação por parte do sujeito, pautadas nesta reflexão ética. A partir da temática da formação de professores, o prof. Severino alerta-nos sobre a importância do docente desenvolver a sensibilidade ética em sua atuação profissional. A relevância dessa conduta vale pelo resgate da autonomia moral do próprio docente que se constitui, ainda que de forma inconsciente, em modelo de comportamento para seus alunos e colegas.
“Sensibilidade” retorna agora durante o encontro com meus colegas da ANPEPP graças à lembrança do prof. Lino de Macedo. Antes um parêntese: estar em um evento com o prof. Lino é estar em contato com alguém disposto a compartilhar seus saberes. Para mim, esta é uma de suas características mais admiráveis e evidência de sua sabedoria. Voltando ao tema, ao comentar o conceito de sensibilidade cognitiva, o professor destacou sua relação com o sentido de competência. Lembrou que Piaget aborda o assunto em seu último livro “Epistemologia Genética”. Piaget explica a competência como sensibilidade do organismo ao meio. Sensibilidade que permite uma resposta do sujeito a um estímulo do meio.
Desta perspectiva, de acordo com o prof. Lino, o jogo de regras pode ser compreendido como o ambiente no qual o sujeito pode evidenciar graus e matizes de sensibilidade cognitiva. Neste caso, sensibilidade a aspectos do jogo como peças, regras, caminhos, estratégias de ataque ou estratégias de defesa. Ser sensível a elementos do jogo de regras implica agir intelectualmente (ou concretamente) sobre ele; reconstituí-lo concretamente, jogando, (ou mentalmente); reconhecer observáveis do sujeito e do jogo e coordená-los (relacioná-los); refletir e tematizar sobre o jogo, descrevendo-o, explicando-o e justificando suas ações.
Além disso, a qualidade da atividade do jogo de regras implica reciprocidade entre os sujeitos que jogam – uma relação sujeito-alteridade. Dizer reciprocidade significa colocar-se no lugar do outro, olhar o jogo a partir do olhar do outro e, então, jogar a partir dessas informações. Em conformidade com Piaget, reciprocidade é outra maneira de compreender a descentração de pensamento que se opõe ao centrar-se e, em conseqüência, ao ser capaz de pensar levando em conta o ponto de vista do outro. Como fator de desenvolvimento a sensibilidade cognitiva (ou competência cognitiva) pode vir sofrer positivamente a influência da instituição escolar. Dessa maneira, mediadas pelo jogo de regras, as competências cognitivas podem ser fortalecidas.
Por outro lado, relacionando esta possibilidade à discussão sistematizada pelo prof. Severino, podemos afirmar que a sensibilidade ética encontra no jogo de regras um momento privilegiado de desenvolvimento. Em outras palavras, o jogo de regras fornece uma estrutura moral na qual o sujeito pode desenvolver sua sensibilidade ética. O prof. Lino comentou que o jogo de regras se constitui uma situação inerentemente conflituosa que permite aumentar e enriquecer o repertório de habilidades intelectuais dos sujeitos. Ousamos acrescentar que o jogo de regras é rico também para o desenvolvimento da sensibilidade ética e, portanto, sociais como denomina o prof. Severino.
Esta perspectiva nos sugere uma dimensão intelectual e social do uso do jogo de regras na escola que vai para além do ensino de conteúdos. Significa possibilidades de desenvolvimento do sujeito, de sua sensibilidade cognitiva e ética e, em consequência, de sensibilidade às demandas sociais com autonomia de pensamento e de ação. Ainda que dentro de parâmetros capitalistas, o jogo de regras constitui-se também uma busca de nossa parte, como docentes, por condições de vida mais plenamente democráticas – política, econômica e culturalmente.
Em 13 de junho de 2012, Geiva.
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