quarta-feira, 11 de julho de 2012

Senso comum: o bóson das ciências humanas?


Em Portugal – Évora e Maringá, julho, 2012.


Comecei este texto em Lisboa com o título “Saberes profanos, saberes sagrados e poder” baseado nas falas do evento em Évora. Chegando à Maringá o acesso a informações sobre a descoberta do bóson de Higgs, a denominada partícula de Deus, me levou a novas inferências sobre a relação entre senso comum e ciência.

Marcelo Gleiser, na Folha de São Paulo de domingo (08/07), comenta que o “papel do Higgs é único entre as partículas [da matéria]: ele é responsável por ‘dar massa’ a todas as outras. Vale lembrar que, na física moderna, as entidades essenciais são os campos. Partículas são excitações desses campos, como pequenas ondas na superfície de um lago. O campo de Higgs estaria por toda parte, como o ar na nossa atmosfera. Ele interage com os campos de outras partículas: por exemplo, o campo dos elétrons ou dos fótons [...].

Um dia antes, sábado, na Folha, (07/07), Álvaro Pereira Júnior, escrevia que tudo é constituído pelas partículas de Deus, não só “Scarlett Johansson” (sic). “Ela e tudo o mais no universo que tem massa (popularmente conhecida como peso): as batatas-baroas, a poeira cósmica, os gases, os sólidos e os líquidos, o pigmento das retinas, uma folha de acelga, um caramujo escondido na areia, a própria areia, o ar. Todas as coisas.”

O autor comenta ainda que essa descoberta “dá uma boa chacoalhada na teoria vigente do mundo subatômico, sobre o qual se edificou a física contemporânea. [...] Mas ficará faltando explicar por que existem. Por que prótons, nêutrons e elétrons decidiram dar uma paradinha, se juntar, e formar tudo o que conhecemos, em vez de vagar solitários pelo espaço, praticamente à velocidade da luz?”.        

   As características e condições de existência do bóson de Higgs me fizeram pensar: não são também estas as características e condições de existência do senso comum? A inscrição do senso comum como um saber importante para a edificação de todas as formas de saberes humanos, incluindo a ciência, por parte Serge Moscovici também deu “uma boa chacoalhada”, nas ciências humanas. Até então relacionado às representações coletivas, o senso comum passa a ter um status diferente, o de representações sociais. Neste novo status o senso comum é entendido como constituído pelo pensamento hegemônico, pela ciência e todas as outras formas de saber, mas, principalmente, como um conhecimento que os constituem também.

Para a ciência, até então, segundo afirmação de Denise Jodelet no evento, o senso comum era considerado um “saber profano”, um “saber selvagem”; enquanto a ciência era considerada saber um “sagrado”. Entendia-se que a origem ontológica de um e outro saber fosse diferente. Os achados de Moscovici, para a autora, trouxeram a tona a origem ontológica única dos dois saberes: ambos estão imbricados à subjetividade dos sujeitos que os produzem. Ambos dependem dos elementos subjetivos e experienciais dos sujeitos apesar da busca incessante da ciência pela não promiscuidade com a subjetividade humana.

Jodelet lembra que é a interação do sujeito com o objeto de conhecimento que produz o saber e não as características estruturais deste último. É, portanto, a experiência do sujeito sobre o objeto que permite a produção de conhecimentos. Neste sentido, a ciência pode ser compreendida como um saber metódico e formalizado cuja origem é, intrinsecamente, o saber de senso comum. A ciência se caracteriza como um saber em constante processo de objetivação que categoriza os fatos, que os formaliza, e que adquire uma qualificação “sagrada” pela sociedade moderna.

Valendo-nos das afirmações de Gleiser, Pereira Junior e Jodelet, deduzimos que o senso comum, do mesmo modo que os bósons de Higgs e as outras partículas de massa, dá uma “paradinha” e se organiza criando saberes sobre nós mesmos e o mundo que nos rodeia. Que “paradinha” é esta? Uma paradinha em que o senso comum se combina – se funde – com elementos imprevistos e de maneira também imprevista: funde-se com elementos da percepção, da moral, da religiosidade, da afetividade, de conceitos científicos, da ludicidade ou da experiência prática, pessoal e coletiva. Enfim, combinações de tal ordem, peculiares a cada um, e que produzem “a novidade”. São combinações sobre as quais o indivíduo que as produz, seu grupo – científico ou não – e a própria sociedade não têm controle. É a partir dessa condição de produção de novidades que o ser humano cria conhecimentos (científicos e não-científicos) e... toda a diversidade de artefatos técnicos e culturais que sustentam sua vida no planeta.

Em sua apresentação, Jodelet exemplificou a importância dessa “chacoalhada” sobre o estatuto dos conhecimentos de senso comum e científico, iniciada por Moscovici na década de 60 do século passado, com as  relações doença-paciente-médico. Neste caso, a mudança do estatuto dos saberes do médico e do paciente implica a modificação das relações entre ambos, bem como entre os dois e a própria doença. O médico pode aprender sobre a doença a partir do saber experiencial (conhecimento selvagem, profano) que o paciente detém sobre ela.

Por outro lado, a aprendizagem do paciente com o médico em combinação com seu saber experiencial permite-lhe formar sua expertise sobre a doença. Segundo dados colhidos pela autora, esse processo é capaz de reduzir a negação e o pensamento mágico do paciente em relação à sua cura e à sua doença. Para a saúde pública francesa onde a pesquisa

relatada por Jodelet foi realizada isso significou maior adesão e manutenção dos pacientes nos tratamentos médicos: o saber científico e o saber experiencial formaram uma unidade de expertise.         

O exemplo dado por Jodelet na área da saúde nos lembrou duma experiência brasileira muito bem sucedida e que serviu como marco inicial para a mudança da forma de atendimento a doentes mentais. A psiquiatra Nise da Silveira, reconhecida internacionalmente por seu trabalho, ao compreender a existência e a importância dos saberes dos doentes mentais que atendia em um hospital público, favoreceu sua expressão. A forma de expressão escolhida por eles foi predominantemente artística: a pintura, a escultura, a dança, a música. Muitas dessas produções, assim como seus autores, foram reconhecidas como obras de arte com apresentação em galerias e museus – nacionais e internacionais. O que mudou? No que a doutora Nise da Silveira deu uma “boa chacoalhada”?

Com base nos argumentos anteriores, considero que mais uma vez a “chacoalhada” foi dada no estatuto dos saberes  humanos. O saber “selvagem” possuído pelos doentes mentais – seu senso comum – foi alçado a uma forma de saber considerada capaz de criar. A combinação de informações da percepção, de sua afetividade, de sua moral, das cores, dos sons, dos movimentos, entre tantos outros, foi favorável a criação de novos saberes – a música, os movimentos de dança, a escultura ou a pintura – considerados, então, neste caso, saberes socialmente aceitos e valorizados. Transpondo esses exemplos para a área da educação escolar o que podemos inferir? O que podemos hipotetizar sobre o tema?

 Pensar ou fazer essa “chacoalhada” na instituição escolar não é novidade e também não tem sido ponto de acordo entre pesquisadores de diferentes linhas teóricas. Dewey e Anísio Teixeira, Freinet e Snyders, para citar alguns, buscaram formas de fazer a passagem do saber de senso comum ao saber científico escolar. Mais recentemente, Arnay e Terrazan apontaram a impossibilidade de substituição de um conhecimento pelo outro – o senso comum, promíscuo e de validade duvidosa; e a ciência, objetivo e com validade certificada. Os autores afirmam que os dois tipos de conhecimento mantêm sua co-existência ainda que a escola busque a predominância do conhecimento científico sobre o senso comum.

Que conseqüências esta “chacoalhada” epistemológica tem trazido para a escola brasileira? Que conseqüências pode vir a trazer para a escola brasileira contemporânea? Essas são respostas que nosso grupo de pesquisa vem procurando encontrar do ponto de vista teórico e empírico e que justificam em parte sua existência e continuidade.  

Um abraço aos membros de nosso grupo e simpatizantes, Geiva.

       

                                

       




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