segunda-feira, 25 de junho de 2012

Vergílio Ferreira? De quem se trata?


Em Portugal, Lisboa - junho de 2012.

            Em Portugal há alguns dias, uma ida às livrarias de Lisboa suscitou-me o desejo de conhecer outros autores do século XX, que não Saramago, bastante reconhecido entre nós brasileiros. Por indicação de uma funcionária da livraria, deparei-me com Vergílio Ferreira, tão ou mais expressivo em Portugal do que o próprio Saramago.
Nas orelhas de suas obras observei comentários sobre a densidade e o caráter intimista de sua escrita. Ao folhear um de seus livros, menções à Évora, cidade forte e bela como Florbela Espanca – poeta e filha famosa – me convenceram a levá-lo para casa. Na sacola de compras passei a carregar vários pontos de interrogação: O que iria encontrar em Vergílio Ferreira? A ironia e o sarcasmo de Phillip Roth? As incompreensões e descrenças de Albert Camus? A tristeza e o desalento de Saramago?
Enquanto inicio a leitura de sua obra, em uma visita à Universidade de Évora entrei em contato com um pequeno volume contendo dois estudos sobre Vergílio Ferreira lidos durante uma homenagem póstuma ao autor, em 1996. Sua leitura tem me ajudado a compreender um pouco mais o autor e, nesta caminhada, tenho a impressão de encontrar vários pontos de convergência com os estudos de nosso grupo de pesquisa. É o que pretendo relatar a seguir...
Com sofreguidão comecei a leitura de Aparição. O autor define aparição como revelação sobre a existência humana. Inicia sua obra contando em primeira pessoa a chegada do protagonista à Évora para exercer seu ofício de professor do Liceu. Ele acaba por conhecer Sofia que apresenta dificuldade para aprender latim e tem nele um professor dedicado e logo, logo, apaixonado. A paixão passa a ser recíproca e é neste ponto que se encontra minha leitura ao escrever o presente texto.
Esta é uma das narrativas de Vergílio nesta obra. Digo uma de suas narrativas, mas talvez não seja este o melhor termo para definir o entrelace de vidas que se estabelece ao longo de seu texto. Outras vidas são narradas, em várias camadas de passado – mais próximas e mais remotas. As vidas do professor e de Sofia; as vidas da família de Sofia; e as vidas do professor e sua família. São exemplos disso a descrição do primeiro encontro do professor e de Sofia, e dos episódios que transcorreram um pouco antes e um pouco depois da morte do pai do protagonista durante um jantar em família.
Percebo que Vergílio, enquanto narra os fatos dos diferentes passados e do presente, toca em reflexões sobre a existência humana. É sugestivo o caso que o professor, Doutor Alberto Soares como é chamado, narra a Chico, amigo do pai de Sofia, e a Bexiguinha, aluno do Liceu, que para alguns se converte em tópico de chacota, enquanto para outros, motivo para expressar um pensamento até então encoberto. Por meio de dois personagens – o aluno do Liceu, cheio de espinhas, muito quieto e, de certa maneira, excluído pelos colegas; e a mãe de Sofia, madame Moura, uma dona de casa comum – parece dizer da exclusão que o indivíduo pode sentir apenas pelo fato de pensar de um modo diferente da maioria com a qual convive.
Assim é que a reação da mãe de Sofia ao caso contado pelo professor é tratada pelo marido como excentricidade e certa tendência ao “desequilíbrio” mental, enquanto a de Bexiguinha é considerada uma confirmação de seu comportamento “estranho”. De qualquer forma, em ambos os casos não é assim que o protagonista os vê.
O caso é o seguinte: a partir de uma situação de enforcamento que o pai de Sofia e o professor quase assistem, este se dá conta do tema sobre o qual gostaria de falar para a comunidade em palestras públicas. Comenta com Chico, o organizador das tais palestras públicas, que há momentos em que o ser humano não escapa de enfrentar a si e sua pequenez; apesar de ter medo deste momento nenhum de nós consegue escapar. Para ilustrar explica a sensação que temos ao nos encontrarmos sozinhos e no escuro, a noite. É como se nos defrontássemos a nós mesmos em um espelho. O professor conta que desde criança quando se olha no espelho é como se visse o outro de si mesmo.
Ao ouvir este relato Bexiguinha acaba por admitir que também se sente assim: as vezes pensa como seria se fosse uma “galinha”, as vezes faz caretas ao espelho como se fosse “outros” de si mesmo. Quando se despede do professor Bexiguinha avisa que iria para casa “pôr-se bem no centro de [si] e ver-[se], sentir-[se] bem de dentro para fora, descobrir a pessoa que está em [si]”. Como os comentários do professor e de Bexiguinha chegaram aos ouvidos da família de Sofia por intermédio de Chico, a mãe passou boa parte da madrugada acordada e pondo-se diante do espelho passou a mirar-se interrogativamente.
Na família do professor as reações dos irmãos – Tomás e Evaristo – à morte súbita do pai também mostram a fragilidade humana ao evidenciar os diferentes graus de compromisso, e de sua expressão, com o pai morto. Um dos irmãos recusa-se a trocar as roupas do pai e com sua mulher repete preocupações e falas já esperadas por todos: Evaristo “fala dos seus negócios, 200 contos, 500 contos, a casa Varela, 400 contos de encomendas”, enquanto sua esposa, Julia, “contava anedotas com pimenta”.
Do ponto de vista moral, fica-me uma interrogação que, embora não abordada por Vergílio, não sei responder e me incomoda. Como avaliar o comportamento de Evaristo. Se, de um lado, para a moralidade do grupo sua conduta pode ser considerada imoral por não manifestar o afeto que um filho deveria manifestar por seu pai; por outro lado, sendo a moral uma construção de grupo, incluindo os sentimentos e suas expressões, sua conduta poderia ser considerada uma manifestação da liberdade humana. Em sua obra, O estrangeiro, Albert Camus mostra o quanto o indivíduo pode ser mais fortemente julgado pelas intenções, boas ou más (mesmo que do passado), do que por ações do seu presente. É o caso do indivíduo que, embora assassino é julgado menos por seu assassinato do que por suas manifestações de falta de amor filial, uma vez que não chorou e não acompanhou da maneira esperada o enterro de sua mãe.
Para responder, em parte esta a questão – como entender o comportamento de Evaristo, do estrangeiro, e de qualquer um de nós –, escolho o seguinte trecho escrito por Vergílio:
Por enquanto sinto a evidência de que sou eu e que me habito, de que vivo, de que sou uma entidade, uma presença total, [...] este vulcão sem começo nem fim, só actividade, só estar sendo, EU, esta obscura e incandescente e fascinante e terrível presença que está atrás de tudo que digo e faço e vejo.
De outra parte, a impressão de descontinuidade dos fatos, que tenho durante a leitura do texto de Vergílio, é explicada pela profa. Eunice Cabral (Universidade de Évora) e faz algum sentido para mim. A professora destaca que da perspectiva vergiliana “A realidade não constitui um objeto em si mesmo mas antes irrompe em eventos descontínuos e irrepetíveis”; a “realidade é um monturo e a confusão a que nós impusemos uma ordem”; “A [realidade] é um excesso de fenômenos descoincidentes que têm lugar num mundo simultaneamente esvaziado de um sentido global”.
Além disso, sinto como muito forte a presença do “sujeito” em sua obra, o que é confirmado pela docente. Contudo, para ela, o “eu já não é concebido [em Vergílio] como um princípio da subjectividade universal a partir da qual se pode traçar uma visão unitária da realidade, como nos primeiros tempos da modernidade. Com efeito, o retorno do narrador-sujeito, no romance moderno do século XX é acompanhado de um perspectivismo cada vez mais elaborado [...]”.
Esses dois parágrafos revelam três condições que são caras ao trabalho científico do GEPAC: a realidade/a história não se constitui uma progressão linear; o modo de compreender essa realidade não é única e verdadeira; o eu compreende essa realidade a partir de mais de uma perspectiva. São muitos os eus que conhecem... e em cada eu são vários os que nos definem...
Sua obra põe em causa os dualismos tidos como universais: o interior/exterior; aparência/realidade; ser/parecer. Pelo contrário, segundo a profa. Cabral, para o autor a aparência nada mais é do que a maneira da realidade/do ser se revelar. Portanto, não se opõem. Podemos depreender daí, por exemplo, que não há nada a desvelar e sim a compreender o que a aparência revela. Não há algo a buscar por trás ou para além da aparência. A aparência ela em si revela o que é a realidade/o ser.
Outra docente, profa. Rosa Maria Goulart (Universidade dos Açores), que com seu texto também homenageia Vergílio Ferreira, lembra que sua obra pode ser considerada uma continuidade do novo romance que desde o final do século XIX vem sendo representado por “Flaubert, Dostoievski, Proust, Kafka, Joyce, Faulkner, Beckett”. Classificação em que o autor sente parcialmente confortável, conforme a docente. Além disso, embora alguns críticos creditem sua obra ao existencialismo ele mesmo se distancia desta perspectiva filosófica ao afirmar, segundo a professora, que “o Existencialismo, denunciando o ‘absurdo’, sofrera com ele; e o Novo Romance se instalara nesse ‘absurdo’ sem sofrer nada com isso”.
Vergílio parece admitir sua filiação ao novo romance no que se refere ao “desgaste das formas estruturais do romance tradicional e ao uso do tempo, ou seja, “à liberdade de um jogo entre o real e o irreal”, habilidade na qual destaca Kafka “o grande mestre”. Para a profa. Goulart, Vergílio mantém “com o novo romance uma ambígua relação, de distanciamento crítico [...] e de alguma admiração. Novos aspectos que coincidem com a forma de visão de mundo que norteia as pesquisas do GEPAC.
Um abraço a todos do GEPAC e simpatizantes...
Geiva

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Sobre jogo, desenvolvimento e outras inferências...


XIV Simpósio da ANPEPP - Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia 2012 / Belo Horizonte

Durante os encontros do GT Jogo e sua importância para a Psicologia e a Educação discutimos vários temas. Alguns chamaram especialmente minha atenção, talvez pelo fato de estarem, de alguma maneira, relacionados aos projetos de pesquisa do GEPAC. Um desses temas refere-se à Sensibilidade Cognitiva.
Esse tema passou a fazer parte de meu repertório conceitual quando fiz o curso de Psicopedagogia com o psicopedagogo Jorge Visca, em Curitiba, anos 80. Ele referia-se à sensibilidade e insensibilidade cognitiva como uma condição do sujeito deixar-se ou não envolver, tocar, atravessar por algum elemento do meio: uma música, os fatos de uma narrativa e sua seqüência, os dados e os procedimentos de resolução de um problema. Segundo Visca, a sensibilidade cognitiva (ou insensibilidade cognitiva) depende de condições intelectuais do sujeito como conhecimentos e experiências anteriores, assim como condutas cognitivas: ordenar, classificar, comparar, relacionar, entre outras. Depende também da condição afetiva do sujeito, tanto os recursos emocionais de que dispõe como daqueles que é capaz de acionar ou não no momento específico em que se aproxima de um objeto de aprendizagem.
Assim, a sensibilidade e a insensibilidade cognitiva podem ser acompanhadas por estados de indiscriminação e discriminação afetiva. Por exemplo, um sujeito que apresenta insensibilidade cognitiva a um objeto de conhecimento como uma placa de aviso da localização do sanitário de um shopping pode sentir, ao mesmo tempo, indiscriminação afetiva, também denominada por Visca de estado confusional. Procuremos imaginar: o sujeito precisa ir urgentemente ao sanitário e não consegue enxergar a placa, ele vê e não vê a placa, comportamento acompanhado de uma sensação de grande confusão interna. Em outra circunstância este mesmo sujeito consegue enxergar duas placas, uma com desenho de mulher e outra, de homem. Sensível cognitivamente às placas interpreta-as como possíveis sanitários, mas elas estão escritas em uma língua que não sabe ler. As placas passam a ser sentidas como “inimigos em potencial”. O sujeito, então, pode vir a sofrer uma sensação de medo ao “ataque das placas” que são apenas parcialmente inteligíveis e dificultam sua avaliação e tomada de decisão sobre o que fazer. Frente a uma situação deste tipo temos reações diferentes: uns paralisam, outros buscam ajuda, e outros, ainda, se arriscam e entram no sanitário, certo ou errado’.
Ao conjunto de combinações insensibilidade cognitiva-indiscriminação afetiva e insensibilidade cognitiva-discriminação afetiva (medo ao ataque e medo a perda), Visca denominava obstáculos epistemofílicos de aprendizagem. Epistemofilia se refere, neste caso, ao vínculo afetivo do sujeito com o aprender (conhecer) – positivo ou negativo. Nos anos em que atuei em atendimento clínico psicopedagógico esse conhecimento foi de grande valia para mim e meus clientes que, graças a ele, puderam ser melhor compreendidos em suas dificuldades de aprendizagem.
Há poucas semanas o tema “sensibilidade” voltou à baila como sensibilidade ética preconizada pelo prof. José Joaquim Severino. Procurando textos para a disciplina de Didática do curso de Pedagogia encontrei este conceito explicado como a condição de o sujeito deixar-se tocar pelas situações que envolvem valores. Ou seja, não segui-los pura e simplesmente, mas interpretá-los como dilemas morais que merecem sempre um processo de reflexão. Uma reflexão que envolve pensar as regras morais a partir do contexto em que foram produzidas, bem como do contexto em que estão sendo cogitadas. Isso significa autonomia de pensamento, de tomada de decisão e de ação por parte do sujeito, pautadas nesta reflexão ética. A partir da temática da formação de professores, o prof. Severino alerta-nos sobre a importância do docente desenvolver a sensibilidade ética em sua atuação profissional. A relevância dessa conduta vale pelo resgate da autonomia moral do próprio docente que se constitui, ainda que de forma inconsciente, em modelo de comportamento para seus alunos e colegas.
Sensibilidade” retorna agora durante o encontro com meus colegas da ANPEPP graças à lembrança do prof. Lino de Macedo. Antes um parêntese: estar em um evento com o prof. Lino é estar em contato com alguém disposto a compartilhar seus saberes. Para mim, esta é uma de suas características mais admiráveis e evidência de sua sabedoria. Voltando ao tema, ao comentar o conceito de sensibilidade cognitiva, o professor destacou sua relação com o sentido de competência. Lembrou que Piaget aborda o assunto em seu último livro “Epistemologia Genética”. Piaget explica a competência como sensibilidade do organismo ao meio. Sensibilidade que permite uma resposta do sujeito a um estímulo do meio.
Desta perspectiva, de acordo com o prof. Lino, o jogo de regras pode ser compreendido como o ambiente no qual o sujeito pode evidenciar graus e matizes de sensibilidade cognitiva. Neste caso, sensibilidade a aspectos do jogo como peças, regras, caminhos, estratégias de ataque ou estratégias de defesa. Ser sensível a elementos do jogo de regras implica agir intelectualmente (ou concretamente) sobre ele; reconstituí-lo concretamente, jogando, (ou mentalmente); reconhecer observáveis do sujeito e do jogo e coordená-los (relacioná-los); refletir e tematizar sobre o jogo, descrevendo-o, explicando-o e justificando suas ações.
Além disso, a qualidade da atividade do jogo de regras implica reciprocidade entre os sujeitos que jogam – uma relação sujeito-alteridade. Dizer reciprocidade significa colocar-se no lugar do outro, olhar o jogo a partir do olhar do outro e, então, jogar a partir dessas informações. Em conformidade com Piaget, reciprocidade é outra maneira de compreender a descentração de pensamento que se opõe ao centrar-se e, em conseqüência, ao ser capaz de pensar levando em conta o ponto de vista do outro. Como fator de desenvolvimento a sensibilidade cognitiva (ou competência cognitiva) pode vir sofrer positivamente a influência da instituição escolar. Dessa maneira, mediadas pelo jogo de regras, as competências cognitivas podem ser fortalecidas.
Por outro lado, relacionando esta possibilidade à discussão sistematizada pelo prof. Severino, podemos afirmar que a sensibilidade ética encontra no jogo de regras um momento privilegiado de desenvolvimento. Em outras palavras, o jogo de regras fornece uma estrutura moral na qual o sujeito pode desenvolver sua sensibilidade ética. O prof. Lino comentou que o jogo de regras se constitui uma situação inerentemente conflituosa que permite aumentar e enriquecer o repertório de habilidades intelectuais dos sujeitos. Ousamos acrescentar que o jogo de regras é rico também para o desenvolvimento da sensibilidade ética e, portanto, sociais como denomina o prof. Severino.
Esta perspectiva nos sugere uma dimensão intelectual e social do uso do jogo de regras na escola que vai para além do ensino de conteúdos. Significa possibilidades de desenvolvimento do sujeito, de sua sensibilidade cognitiva e ética e, em consequência, de sensibilidade às demandas sociais com autonomia de pensamento e de ação. Ainda que dentro de parâmetros capitalistas, o jogo de regras constitui-se também uma busca de nossa parte, como docentes, por condições de vida mais plenamente democráticas – política, econômica e culturalmente.
Em 13 de junho de 2012, Geiva.

sexta-feira, 8 de junho de 2012


XIV Simpósio da ANPEPP - Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia 2012 / Belo Horizonte

Pensando sobre o GEPAC...

Este é o segundo Simpósio da ANPEPP do qual participo e tem sido uma experiência interessante observar como outras áreas de conhecimento vêm discutindo questões relacionadas à sua produção e transmissão. Há dois anos atrás, a experiência foi muito gratificante em razão, principalmente, de minha entrada no grupo de trabalho sobre Jogos, sob a coordenação do prof. Lino de Macedo – GT “Os Jogos e sua importância para a Psicologia e a Educação”. Neste ano, além de minha permanência no grupo venho participando com mais atenção de outras atividades do evento.
Ontem assisti uma mesa-redonda que me deixou animada e ainda mais confiante em nosso trabalho atual no GEPAC. A mesa-redonda teve como tema a “Interdisciplinariedade na Produção e Divulgação do Conhecimento Científico” com a presença dos professores Mary Jane Spink (PUC/SP), Orlando Bueno (UNIFESP) e Luiz Fernando Dias Duarte (UFRJ). O tema tratado é caro ao nosso GEPAC, uma vez que tratou das vantagens, limites e dificuldades do movimento de interdisciplinariedade entre as disciplinas científicas. A profa. Mary Jane lembrou o imperativo da ordenação dos conhecimentos que a academia enfrenta para, por exemplo, obter financiamento de órgãos de fomento e, ao mesmo tempo, a necessidade do uso de uma multiplicidade de saberes para a análise de determinado fenômeno social, objeto de nossa pesquisa nas Ciências Humanas.
O prof. Luiz Fernando chamou a atenção para o fato de que a hierarquização original das ciências, “os mandamentos iluministas”, continua “pulsante” sob nossas práticas de pesquisa. A tradição Romântica, da qual fazem parte a Psicanálise, a Psicologia ou a Antroplogia, por exemplo, se opôs e continua se opondo à tradição iluminista, pois traz à tona a dúvida, não tolerada nesta última. Para o professor, todas as produções científicas realizadas como reação ao Iluminismo podem ser consideradas românticas, mesmo aquelas que não se consideram assim, como a obra de Nietsche e Foucault.
Encontrar respostas absolutas e duradouras às dúvidas é pano de fundo da tradição de pesquisa iluminista, enquanto a escola romântica é interpretativa e convive com a dúvida: sabe que encontra respostas sempre transitórias e insuficientes para suas indagações. Transitórias e insuficientes por não serem capazes de abarcar a compreensão dos fenômenos humanos em sua totalidade. Disciplinas científicas como a Psicanálise, a Psicologia Social ou Antropologia Social, entre outras, buscam uma visão holística desses fenômenos por meio de uma percepção e interpretação integradora e abrangente em seus protocolos de pesquisa.
O prof. Orlando, por sua vez, nos lembrou de modelos de interdisciplinariedade bem sucedidas na área da Psicologia, como a Neurociência e a Neuropsicologia. A primeira trata do funcionamento fisiológico da aprendizagem e a segunda da reabilitação de sujeitos com lesões cerebrais congênitas ou adquiridas. Assinala que a Unifesp vem trabalhando em uma tradição holística no processo de neuroreabilitação no qual leva em conta de maneira assertiva elementos históricos e culturais do paciente. Ou seja, leva em conta a condição “humana” desse paciente.
O prof. Orlando destacou que a interdisciplinariedade se constitui uma integração/fusão de saberes que buscam responder questões para as quais as disciplinas convencionalmente organizadas e hierarquizadas não dão conta: “é preciso criar outros saberes tendo em vista a complexidade da sociedade contemporânea”. O momento atual das ciências humanas pode ser compreendido como uma tensão entre a gestão da produção e divulgação dos conhecimentos científicos e a produção propriamente dita. Em outras palavras, uma tensão entre a produção de saberes pelos pesquisadores “de carne e osso” e o processo de institucionalização desta produção nos Programas de Pó-Graduação e nas agências de avaliação e fomento como CAPES e CNPq, no Brasil. Acredita que esta discussão sobre “perspectivas epistemológicas” ou “atitudes epistemológicas” dos pesquisadores brasileiros lembra um pouco as discussões e perseguições ocorridas em nosso país, na primeira metade do século XX, em relação às “escolas teóricas”.
Por minha conta, exemplifico as situações citadas pelo professor lembrando na área da Educação, o caso das marchas pelo bem das famílias e do país em decorrência da entrada da Escola Nova, americana e européia. Era considerada “comunista” ou “vermelha” pelo governo, educadores, religiosos e pais. Neste período, estudiosos brasileiros como Anísio Teixeira e Fernando Machado, sofreram situações paradoxais de rechaço e apoio. O mesmo ocorreu quando da entrada no país da teoria piagetiana durante a segunda metade do século XX. Neste caso, Ana Maria Popovic e Orly Zucato de Assis, entre outros e outras educadoras, sofreram as agruras da rejeição e do mal-entendimento desta abordagem teórica. Como mostra a dissertação de mestrado de Fátima Fabril (orientanda do GEPAC) essa rejeição foi acompanhada, em um primeiro momento, da “aplicação pedagógica” das “idéias piagetianas” à escola brasileira e, em um segundo momento, desaprovação quase total e absoluta destas propostas didáticas em nome do aparente laissez-faire “inerente” a esta abordagem teórica.
Sensações de pouca valorização e sentimentos de não pertencimento podem, as vezes, fazer parte da convivência do GEPAC em nossa Universidade, em particular em nosso Programa de Pós-Graduação, mas ao entrar em contato com outros ambientes acadêmicos, nosso percurso teórico e metodológico pode ser melhor avaliado. Melhor avaliado em uma das dimensões que considero das mais importantes: sua busca por compreender o ser humano em seu processo subjetivação e objetivação nem que para isso nos valhamos de saberes convencionalmente não considerados parte do cânone da área da Educação.
Um grande abraço e saudade de todos e todas vocês do GEPAC e simpatizantes...

Profª Drª Geiva Carolina Calsa